Texto extraído da FASHION THEORY – a Revista da Moda, Corpo e Cultura, edição brasileira, número 4, dezembro 2002, ©Berg 2002.
Eu não sou Criativo¹
Rosane Preciosa é doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP e professora de Moda Contemporânea na Universidade Anhembi Morumbi e na Faculdade Santa Marcelina.
A produção maquínica de subjetividade pode trabalhar tanto para o melhor como para o pior (…). O melhor é a criação de novos universos de referências; o pior é a mass-midialização embrutecedora à qual estão condenados hoje em dia milhares de indivíduos.
Félix Guatarri, Caosmose
Francis Bacon, um pintor irlandês contemporâneo, não se julgava criativo. Diz isso textualmente diante das câmeras que gravam um documentário sobre sua obra. Um outro artista, que preferia se autodenominar propositor estético, Hélio Oiticica, concordaria com a afirmação de Bacon. Ele também se recusava a acatar para si a idéia de que fosse um sujeito criativo. Mas por quê? O que significa ser criativo?
Dentro da atual lógica do mercado, é sinônimo de capital intransferível, ao alcance de todos. Afinal, o ser humano é criativo e nossa missão é garimpar nossos tesouros ocultos, para melhor comercializa-los. Mas onde é que foi mesmo que os escondemos? Como desenterrá-los?
Podemos, por exemplo, recorrer aos inúmeros manuais de criatividade publicados, que funcionam como ferramenta de busca desse lacre a que nos impusemos. Sim, porque, segundo eles, nós somos os únicos responsáveis pelo bloqueio de nossa energia criadora. É exatamente um livro-guru desses qualquer que irá promover nossa reconciliação, passo a passo, com o suposto artista interior esboçado na infância, e que por alguma razão lá ficou entalado. Segundo essa lógica instrumental instalada, resgatar a criança que fomos esse tempo anterior que supostamente abriga os segredos da criação é decisivo para que possamos prosseguir nossa jornada de crescimento pessoal, de autoconhecimento. Esse é um discurso recorrente, aliás, sustentado por muita gente.
Num segundo momento, então, somos incentivados a nos descobrir habitados por vários eus, que, por mera incompreensão nossa, não permitimos que se manifestem, e com isso perdemos nossa chance única de imprimir um mapa mais fiel de nós mesmos, que irmane todos esses personagens que se penduram em nós, choramingando atenção. Uma vez selecionados, uma idéia mirabolante passa pela nossa cabeça: que tal se os fizéssemos trabalhar para nós? E, de repente, nos vemos às voltas com a seguinte crucial pergunta: que identidade se ajustaria melhor ao nosso propósito de sermos bem-sucedidos?
Nesse campeonato criativo que nos é proposto, certamente sairá vencedor aquele que melhor se moldar “criativamente” às demandas e regulações que se processam na bolsa de valores imateriais. E aquela parte do patrimônio que porventura não se enquadre nessa ordem ficará isolada, será desacreditada, fracassada, é expelida desse mercado que compete e deseja confundir-se com a própria vida.
Nesse pacote que embala promessa de criatividade e manual de instrução de modos de ser criativo, a palavra de ordem é ligue-se, acenda seu talento, brilhe, conquiste o seu espaço, cerque-se de espelhos confiáveis. Prepare-se para dar certo, de preferência usando métodos descomplicados. Lembres-se de que sempre haverá ao seu alcance, em caso de uma eventual desorientação, um manual que o ajude a “focar” com propriedade seus planos e metas existenciais.
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Os modos de vida inspiram maneiras de pensar, os modos de pensar criam
maneiras de viver.
Gilles Deleuze, Nietzsche
Criar, transitar pela existência de posse de um projeto ético-estético flexível, regulável, ajustável às conveniências do mercado da vida. Projeto que se encaixa nas expectativas de um padrão cultural armazenado em nós. Nesse sentido, ele mobiliza um sagaz repertório, que combina idéias e práticas virtualmente presentes, mas sem nome próprio ainda. Um algo sem nome que enigmaticamente já nos predispomos a consumir sem hesitar, porque de alguma forma nos são familiaríssimo.
Nesse sentido, criar então seria proceder a uma recauchutagem de valores, uma maneira de estabilizá-los e, por conseguinte, ratificar nossa conversa com o mundo. Apenas um gesto de reconfiguração do espaço existencial, ornamentando-o, nos preenchendo com uma íntima sensação de reconciliação conosco mesmo e com tudo que está à nossa volta, isolando o que nos pareça perturbador e estranho. Funciona como uma espécie de spa ético-estético, eliminando impropriedades, inconformidades, tudo o que possa acordar uma sensibilidade outra, exigente, que não se deixa plasmar nesses territórios pantanosos, para quem um possível sentido a se dar à vida é torná-la front aberto a experiências.
Inventar é movimentar-se no território radical do inesperado, que nos desarticula completamente. E a própria figura humana experimenta um inevitável colapso, isso porque aquela subjetividade foi despejada daquele lugar que costumava habitar. Liberaram-se potências desconhecidas que lhe exigem outras referências significativas, outra geografia de sentidos por onde transitar. O inventor é um cartógrafo de terras ignotas (Salomão 1993: 98). Dispõe-se a se conectar com ou sem nome que lhe dá boas-vindas, a embarcar num caudaloso rio de sentidos sempre provisórios, imperfeitos, paradoxais, que o estimula a ousar existir frustrando o papel do consumidor feliz e criativo que o tempo todo dele exige.
É improvável, é mesmo impensável, que se possa redigir um manual de invenção, mesmo porque a vida em sua grandeza não pode ser espremida num manual de instruções, não é um campo de vivências domesticáveis, fofas. Ao contrário, é como se todos nós deliberássemos fixar domicílio nas encostas de um vulcão, como diria Nietzsche.
Para Hélio Oiticica, o que importava era “deslanchar estado de invenção”, palavras dele. Nada a ver com o cultivo em cativeiro de hábitos criativos, ao contrário, é inventar estados de si que desbordam de um destino pessoal. Invenção é intervenção na existência movida por uma profunda necessidade. É construir uma “câmera de ecos” (Salomão 1996: 21), que ressoe o vivo e você junto. Inventar não é colorir o mundo, mas corar-se de mundos, sonhando acordado dia após dia com “um povo que falta”.
Nota
¹Este texto é um fragmento da minha tese de doutorado, intitulada Rumores Discretos da Subjetividade e defendida na PUC-SP, em junho de 2002, no Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade Contemporânea.
REFLEXÃO:
Acredito que todas as pessoas tem o “dom” da criatividade, porém, esse pode estar adormecido, sendo que, em algumas pessoas ele pode vir a manifestar-se mais “brutal” e em outras mais “tímido”. Todavia, isso não quer dizer que não se tem como destacar suas habilidades, como aprimorá-las, ou, então, transformá-las em arte.
O “Eu não sou criativo”, muitas vezes proliferado pelas pessoas, soa a preguiça. Preguiça de “colocar a mão na massa”, preguiça de ter coragem, isso mesmo, coragem para liberar suas ideias, pois é assim mesmo que as coisas funcionam, não há um manual de instruções que te ensine a ser criativo – como diz no texto de Rosane Preciosa – tu tens que aprender qual é a tua maneira de sê-lo. Os seres humanos são diferentes entre si, já diz o clichê, e será assim também com a criatividade, cada um expressa-se de maneira desigual, uns podem entendê-la, outros não, porém, isso não quer dizer que algo está errado.
Já entendemos que não vamos encontrar a “receita” da criatividade pronta, sendo assim, precisamos acreditar mais em nós mesmos, confiar nos nossos potenciais e ir adiante. Afinal, algum de nossos “eus” pode estar esperando para se libertar.
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